1 de novembro de 2013

Diogo Teixeira, Incredulidade de S. Tomé, 1595

Diogo Teixeira, Incredulidade de S. Tomé, 1595
óleo sobre tábua, finais do século XVI
Museu de Arte Sacra do Mosteiro de Arouca




Será a metáfora para a pose teatralizada, corpo anatomicamente robusto, tonalidades ácidas e baças, atmosferas sombrias em que destacam a figura central para primeiro plano. Eis o perfil metafísico e espiritualista do maneirismo contra-reformista português. Cristo deixou de ser esquelético. A ressurreição, contra-reformista, tornou-o homem de porte atlético.
O realismo do tratamento cuidado dos tecidos criando atmosferas volumétricas de forte intensidade plástica admite por sua vez uma liberdade criativa, conferindo às figuras principais o protagonismo histórico deixando as restantes personagens, que se perfilam na retaguarda, acentuar o dramatismo céptico e expectante da figura de S. Tomé. A elegância da modelação das formas anatómicas criadas por uma harmonização lumínica transfigura Cristo num ente palpável, mais verdadeiro. Tão verdadeiro que o Seu gesto vigoroso de segurar a mão incrédula, torna verosímil a acção e a chaga penetrada pelos dedos desconfiados de S. Tomé. Ver para crer.
Diogo Teixeira inspirou-se numa gravura de Dürer nesta sua composição que por sua vez mereceu agrado dos seus contemporâneos dadas as inúmeras réplicas pintadas por imitadores seiscentistas[1].
Esta nova ética do corpo[2], nada mais é que a forma mais espectacular, de um corpo flagelado em definitivo, a mais difundida, de um tema estóico que o cristianismo retomou para fazer pesar sobre nós durante dezoito séculos: a rejeição do prazer -a libido[3].
Para a arte, o essencial foi o endurecimento da posição corpo, como extensão do eros corruptível ao da humanidade assumida por Cristo na Encarnação -logos.
As “constituições sinodais” dos bispados, bastante divulgadas após Concílio de Trento, normalizavam por toda a parte a representação artística, «precavendo os artistas e quem lhes encomendava obras contra as “imagens de formosura dissoluta” ou que “dêem ao povo ocasião de erro, ou escândalo”»[4].
Estavam lançados os alicerces da “arte portuguesa” a partir da adopção de um “corpo elegíaco[5]”, como dogma iconográfico.







[1] É sabido da grande importância das gravuras e a obra de Dürer teve na pintura em geral e na portuguesa em particular. As gravuras funcionavam para os pintores e escultores como os tratados de arquitectura para os arquitectos. E se o tratado do Vitrúvio foi “bíblia clássica” para os novos tratadistas (Alberti, Bramante, Sebastião Serlio, Vignola, Palladio, Scamozi, Pietro Cataneo, etc.) tornando bem claro os cânones clássicos que a arquitectura havia de obedecer; ordem, simetria, proporção, forma, para a arte portuguesa regia-se pelo dogma religioso.
[2] O corpo, essa «forma, segundo José Fernandes Pereira, essa incontornável presença do mundo e da condição humana, era um marco disperso pela terra como ordem e sinal, sendo do domínio da arte. A beleza era outra coisa, pressupunha a eliminação da Multiplicidade e a relação ao Uno incorpóreo, fonte do nosso desejo que o despojamento e o amor permitem alcançar». in Vieira Lusitano 1699-1783, o desenho, Catálogo, Ministério da Cultura, Museu de Arte Antiga, Lisboa, 2000, pp.14-15.
[3] O grande teólogo Hugues de Saint-Victor acrescentaria ainda: «se o acasalamento dos pais não puder ser feito sem desejo carnal, a concepção dos filhos não se faz sem pecado». Citado por Georges Duby, Amor e sexualidade no Ocidente, p.200.
[4] Flávio Gonçalves, A legislação sinodal portuguesa da Contra-Reforma e a Arte Religiosa, in Comércio do Porto, Fevereiro, 1960.
[5] A representação figurativa do corpo, na arte portuguesa, limitava-se, salvo raras excepções, a veicular dor, sofrimento, martírio, compaixão. Este corpo elegíaco fará escola no romantismo português.